Os Amantes: não julgue o livro pelo título

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O site de notícias Now This News produziu um vídeo rápido sobre a morte de uma menina paquistanesa condenada à morte por ter ajudado um casal a fugir para se casar.

Esse vídeo choca, assim como o livro Os amantes de Rod Nordland traduzido por mim e publicado pela HarperCollins Brasil.

Apesar do título, Os amantes não traz uma história intensa de amor, com descrições de cenas lindas e românticas, repletas de sentimento em lugares exóticos. Nada disso. Na verdade, trata-se de um texto jornalístico que apresenta uma história real, poderosa e emocionante sobre um jovem casal disposto a arriscar tudo, até as próprias vidas, para ficar juntos.

Zakia, uma jovem afegã tadjique sunita, se apaixona por Ali, um hazara xiita. A charia e os mulás não aprovam casamento entre etnias diferentes, nem casamentos sem o consentimento da família. Zakia e Ali fogem para se casar, mas são perseguidos pela família dela, que deseja lavar a honra da família com sangue: o sangue de Zakia.

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Capa do livro Os Amantes

O casal teve sorte, pois sua história foi publicada no The Nova York Times por Rod Nordland, atraindo a simpatia de vários leitores norte-americanos que fizeram doações para possibilitar a fuga dos jovens, que, até hoje, vivem escondidos, viajando pelo Afeganistão de um lugar para o outro, sempre alertas para que o destino de Zakia não seja o mesmo do da menina do vídeo e tantas outras que são brutalmente assassinadas ou mutiladas pela própria família em nome da honra.

Esse foi um livro emocionalmente difícil de traduzir. O objetivo do autor é apresentar, por meio de uma história real, a crueldade de uma sociedade contra as mulheres e a impotência delas diante de leis impostas pelos homens em nome da religião. Eu já tinha tido contato com a cultura afegã através de livros — O caçador de pipas, Cidade do Sol, O livreiro de Cabul —, notícias da guerra do Afeganistão e séries e filmes inspirados nessa guerra.

No entanto, quando se pega um texto para traduzir, a experiência é completamente diferente da de leitora ou de espectadora. Como tradutora, eu realmente mergulho no texto, analisando-o linguisticamente e buscando a melhor forma de passar para o português as descrições do autor, respeitando seu estilo e suas escolhas.

Rod Nordland, jornalista vencedor do Pulitzer, tem um texto forte e usa a história de amor de Zakia e Ali para mostrar que, apesar de mais de dez anos de presença norte-americana no Afeganistão com o objetivo de formar um estado de direito no país, as mulheres afegãs vivem isoladas da sociedade e não têm seus direitos humanos reconhecidos. Durante o tempo que trabalhou como correspondente em Cabul, Nordland foi testemunha de inúmeros abusos contra as mulheres e aproveita a história de amor entre um hazara e uma tadjique para contar ao mundo inúmeras histórias reais com final trágico.

Eu tive que traduzir cada um desses relatos — a adolescente apedrejada junto com o marido, a garota que deixou o abrigo para mulheres e voltou para casa acreditando ter sido perdoada pela família e cujo corpo nunca foi encontrado, a garotinha de dez anos que foi estuprada por um mulá e ficou tão machucada que teve que passar por várias cirurgias para recompor a vagina, a mulher que foi atacada a machadadas, a adolescente condenada a mais de cem chibatadas por ter sido estuprada e tantas outras…

Em vários momentos, chorei e tive que parar, respirar fundo e me afastar um pouco do texto para me recompor. As descrições são chocantes, bárbaras e cruéis e me afetaram profundamente. Esse livro me fez rever várias crenças e me fez refletir sobre o longo caminho que nós, mulheres, já percorremos para chegar aonde estamos na sociedade ocidental e o longo caminho que ainda temos que percorrer em busca de igualdade e justiça para todas as mulheres, sejam elas do ocidente ou do oriente.

Natalie

Publicado por Natalie

Amante de livros, tradutora e editora com mais de 15 anos de experiência no mercado editorial e fundadora da Calliope Soluções Editoriais.

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